Campinas, maio de 2013.
Caríssimo Mestre Paulo Freire,
Diante do convite a escrever para o Seminário FALA outra
ESCOLA sobre tua influência em minha formação, não resisti ao ímpeto de me
dirigir diretamente a ti porque, ao reunir fragmentos de meus ‘encontros’
contigo, tomei consciência de que ela é muitíssimo maior do que eu imaginava.
Primeiro porque tu me ensinaste uma lição inclusora de
outras tantas: que respostas para perguntas que não foram feitas são, por assim
dizer, uma falta de juízo pedagógico.
Essa lição ancorou alguns pressupostos que orientaram
minha prática profissional como professora, como coordenadora pedagógica, como
formadora e como autora de material de subsídio para professores e material
didático para alunos. E também, e talvez principalmente, minha militância na
vida.
O primeiro pressuposto é que o destinatário de nossa
ação, que se pretende formativa, é um sujeito constituído por sua história
pessoal, que constrói seu próprio conhecimento e, portanto, nossas respostas
bem intencionadas a perguntas inexistentes revelam um método autoritário, por
mais éticos que sejam nossos propósitos.
Outro pressuposto é que, para conhecer o sujeito real que
está diante de nós, é preciso tentar se pôr em seu lugar (apenas tentar, porque
esse deslocamento, concretamente, é uma impossibilidade) e, para tanto, há que
se ter um olhar sensível, uma escuta atenta e paciência suficiente.
Um terceiro é que, se as perguntas não existem conforme
nós, educadores, esperamos, o desafio é gestá-las para que nasçam e se
multipliquem de modo que nossas desejadas respostas passem então a ser
respostas a necessidades que em princípio não existiam, mas passaram a existir
para os sujeitos com os quais trabalhamos. "Partir da realidade",
"considerar a história" e "valorizar os saberes" nada tem a
ver com práticas espontaneístas e ausência de intervenção pedagógica.
E por fim, o quarto deles: por tudo isso, seja com os
alunos na sala de aula ou com os profissionais nos espaços formativos, o
"x" da equação pedagógica é quando problematizar e quando responder
de pronto, ou, dito de outro modo, quando ajudar a construir soluções pessoais
e quando informar diretamente.
Há muitas outras lições, evidentemente, mas destaquei
estas aqui porque, até onde pode chegar minha consciência, elas são mais
constitutivas da profissional que hoje sou.
E quero falar da enorme satisfação de poder me encontrar
pessoalmente contigo várias vezes: uma na escola de pais em que fui
coordenadora, numa tarde deliciosa, e outras tantas na Secretaria de Educação
de São Paulo durante alguns anos – tu, secretário e eu, aprendiz de formadora.
Tive o privilégio de participar dos encontros que tu
fazias com as equipes e dos diálogos que estes encontros sempre representaram.
Tive a responsabilidade de compor a equipe que editou aquele vídeo em que tu
falavas com todos professores das rede municipal de São Paulo e que foi passado
em todas as escolas logo no início de tua gestão. Tive também a petulância de
brigar bastante com certos ‘companheiros’ que, segundo eu mesma, não agiam de
acordo com os princípios que tu sempre defendeste, e também eu. Quero que
saibas que meus cabelos brancos começaram a teimar desde aí. Foram tempos ao
mesmo tempo férteis e difíceis para mim. Porque o exercício do poder é uma prova
inequívoca dos valores que de fato se tem, e não gostei do que vi em uns e
outros com quem me desencantei eternamente.
Depois destas últimas lembranças, para mim bem tristes,
fui dar uma espiada no youtube – é... agora temos este recurso que é um
poderoso paliativo em certas circunstâncias. E qual não foi minha surpresa
quando já logo de cara acho dois filmes mais ou menos breves (sim, porque
contigo nenhuma conversa era breve!) de encontros em que estava eu lá te
ouvindo, um deles justamente no núcleo onde eu trabalhava. Grata surpresa,
Professor!
Ao assistir estes registros fui me dando conta de que
talvez eu tenha aprendido mais te ouvindo do que te lendo... É certo que talvez
eu já tivesse uma tendência a fazer falas e escritas mais ou menos irreverentes,
atravessadas por histórias vividas e por algum humor, mas, pensando agora, acho
mesmo que foi tu a me ‘autorizar’ a fazer essas graças, como acho que foi tu
que me inspirou a falar publicamente de amor. O exercício desta escrita agora
me fez desconfiar disso tudo – veja só que produtiva boniteza, como tu dirias,
é esta brincadeira de escrever.
E, vejas que coisa... quando defendi minha dissertação de
mestrado, foi uma surpresa e uma emoção ouvir de uma das docentes da banca que
o meu estilo de escrita revela um grande cuidado com o leitor e uma amorosidade
que ela reconhecia como semelhante à que se atravessa pelos teus escritos. Para
mim, avaliação melhor impossível! Não bastasse isso, tempos depois, esta mesma
docente me enviou o registro de uma aula dela na universidade em que comparava
afirmações tuas e minhas. Mal pude crer, e de novo fiquei comovida. O fato é
que em geral não percebemos certas marcas constitutivas de quem somos, como
dizia teu amigo Darcy...
E já que estou falando do mestrado preciso te dizer que o
registro da pesquisa foi feito na forma de cartas, que eu pretendia que fossem
(e parecem que são mesmo) narrativas pedagógicas, tanto pelo conteúdo quanto
pela forma. E também neste caso me inspirei em ti. Transcrevi inclusive o que
disse o Alípio Casali, na capa de 'Pedagogia da Indignação', quando te cita:
"fazia algum tempo que um propósito me inquietava: escrever umas cartas
pedagógicas em estilo leve que pudesse recolocar a educação no espaço do
coloquial e do afetivo e reencontrar o essencial da educação – o diálogo que
compartilha e provoca". Quis
fazer o mesmo e alguns dizem que consegui.
Além disso, claro, fiz várias citações tuas. Esta foi
uma, e gosto muitíssimo:
A tarefa do ensinante, que é também aprendiz, sendo
prazerosa é igualmente exigente. Exigente de seriedade, de preparo científico,
de preparo físico, emocional, afetivo. É uma tarefa que requer de quem com ela
se compromete um gosto especial de querer bem não só aos outros mas ao próprio
processo que ela implica. É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem,
sem a valentia dos que insistem mil vezes antes de uma desistência. É
impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar.
... É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem
temer ser chamado de piegas, de meloso, de a-científico. É preciso ousar para
dizer, cientificamente e não bla-bla-blantemente, que estudamos, aprendemos,
ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as
emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também
com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais
dicotomizar o cognitivo do emocional. É preciso ousar para ficar ou permanecer
ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos,
desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso
ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos
expomos diariamente. É preciso ousar para continuar quando às vezes se pode deixar
de fazê-lo, com vantagens materiais.
Neste período do mestrado, idos anos 2004 a 2007,
Guilherme, meu orientador, e eu resolvemos publicar um livro de relatos de
experiências de formação que tomavam a produção escrita dos professores como
mote principal. Tanto que achamos oportuno chamar o livro de "Porque
escrever é fazer história" (Editora Alínea). Inventamos um primeiro
capítulo bem divertido, que é um colóquio dialógico de autores com os quais nos
afinamos quando se trata da leitura e da escrita e que estariam supostamente
conversando em uma mesa redonda. E lá, claro, estava tu, bem na frente, com
tuas 'tiradas'. Eis algumas delas, que nos são caras:
Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas
gratificante. Ninguém lê ou estuda autenticamente se não assume, diante do
texto, ou do objeto da curiosidade, a forma de ser ou de estar sendo sujeito da
curiosidade, sujeito da leitura, sujeito do processo de conhecer em que se
acha. Ler é procurar ou buscar criar a compreensão.
O ato de ler implica sempre percepção crítica,
interpretação e reescrita do lido.
Enquanto leitores, não temos o direito de esperar, muito
menos de exigir, que os escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a
nossa, a de compreender o escrito, explicando a cada passo o que quiseram dizer
com isto ou aquilo. ... Ler não é tarefa para gente demasiado apressada ou
pouco humilde.
Canção óbvia
Escolhi a sombra desta árvore para
repousar do muito que farei,
enquanto espero por ti.
Quem espera na pura espera
vive um tempo de espera vã.
Por isto, enquanto te espero
trabalharei os campos e
conversarei com os homens.
Suarei meu corpo, que o sol queimará;
minhas mãos ficarão calejadas;
meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;
meus ouvidos ouvirão mais;
meus olhos verão o que antes não viam,
enquanto esperarei por ti.
Não te esperarei na pura espera
porque meu tempo de espera é um
tempo de quefazer.
Desconfiarei daqueles que virão dizer-me,
em voz baixa e precavidos:
É perigoso agir
É perigoso falar
É perigoso andar
É perigoso esperar, na forma em que esperas,
porque esses recusam a alegria de tua chegada.
Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me,
com palavras fáceis, que já chegaste,
porque esses, ao anunciar-te ingenuamente,
antes te denunciam.
Estarei preparando a tua chegada
como o jardineiro prepara o jardim
para a rosa que se abrirá na primavera.
(Genève, março de 1971)
Estar no mundo sem fazer história, sem por ela ser feito,
sem fazer cultura ... sem sonhar ... sem aprender, sem ensinar ... não é possível.
Tudo relevante e muito bonito também, que a boniteza
sempre foi uma marca do teu discurso e dos teus atos.
Por fim, quero te dizer que amo especialmente (e uso a
torto e direito) tua ideia de inéditos-viáveis: um modo de forjar na realidade
algo de sonho e utopia que vai se tornando real por obra daqueles que não se
intimidam diante de limites e dificuldades.
Por ora é isto o que desejei te dizer.
Saudações, com saudade infinita,
Rosaura Soligo
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